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Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo

23 de Novembro às 12h40
Por Teofilo Tostes

O crime de violência política contra as mulheres foi revogado?

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, Procurador-Auxiliar da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo

A experiência com os partidos políticos, no sentido de assegurar a inclusão de mulheres no rol de candidatos, demonstrou que muitos deles optam por proceder a inscrições meramente formais. Não se está aqui falando da fraude de candidaturas simuladas, mas de candidatas que não recebem qualquer tipo de apoiamento, material ou financeiro, das estruturas partidárias. É certo que os partidos têm direito a priorizar aqueles candidatos que consideram mais viáveis. Todavia, causa espécie que raramente mulheres são incluídas neste rol. Há, porém, condutas ainda mais censuráveis, nas quais se emprega intimidação, constrangimentos, perseguições e humilhações – das quais são poupados os candidatos homens – para, de alguma maneira, estorvar as pretensões de determinadas candidatas. Isso, evidentemente, surpreende. Como um partido – ou pessoas dele - é capaz de agir contra uma de suas próprias candidatas? Não é do próprio interesse que elas sejam eleitas? Uma explicação, para além da óbvia misoginia, é que as candidatas mulheres poucas vezes são aquelas ligadas às direções partidárias, um clube quase que exclusivamente masculino. Derivar parte dos recursos dos candidatos prediletos para elas cria rancores! E vê-las ocupar espaços de propaganda que poderiam ser dados aos candidatos preferidos das cúpulas partidárias também.

A misoginia na política evidentemente não se circunscreve às instâncias partidárias. Mulheres são também atacadas por adversários políticos, por outros candidatos, por pessoas que têm visões pouco modernas sobre o papel da mulher na sociedade.

Que a política seja considerada um campo de batalha, no qual os pretendentes a cargos públicos devem aceitar situações de beligerância e desrespeito, atuando no mesmo diapasão em relação aos outros, explica porque tanta gente propositada se vê desestimulada a candidatar-se. As mulheres, que são o novo na política, que rompem preconceitos e dão espaço para suas vocações, são alvo preferencial de ataques, voltados não contra suas proposições ou habilidades, mas a sua condição de gênero. Ataques que podem acompanhá-las inclusive se eleitas.

Em boa hora, portanto, surgiu, pela Lei 14.192, de 4 de agosto de 2021, o novo tipo criminal da “Violência Política”, voltado exclusivamente à proteção das mulheres candidatas e eleitas:

"Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher:
I - gestante;
II - maior de 60 (sessenta) anos;
III - com deficiência."

A redação típica dá início à proteção penal com a escolha nas convenções partidárias, momento a partir do qual é possível falar em candidatura. E prossegue, estendendo a competência criminal da Justiça Eleitoral, para o período de mandato eletivo. A redação exige um modo de atuação – o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, à sua cor, raça ou etnia – e uma finalidade, o impedimento ou dificultação da campanha eleitoral ou exercício de mandato. As penas previstas são acanhadas: 1 a 4 anos de reclusão. Estes limitem funcionam como óbice, por exemplo, à prisão flagrancial do agente criminoso, vez que o Código de Processo Penal, art. 313, III, só a permite para crimes cuja pena seja superior a quatro anos.

Poucos dias após a publicação da Lei 14.192, surgiu a nova Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito, a Lei 14.197, de 1º. de setembro de 2021. A nova lei era de há muito aguardada, pois remanescia no ordenamento jurídico brasileiro a vetusta Lei de Segurança Nacional, quase toda incompatível com a Constituição Brasileira de 1988.

A Lei 14.197 veicula crimes políticos, ou seja, aqueles em tese capazes de expor a risco a democracia e suas instituições. Assim, criminaliza atentados à soberania ou à integridade nacional, a espionagem, a tentativa violenta de abolir o Estado Democrático de Direito, o golpe de estado e condutas congêneres. Entendeu o legislador da Lei 14.197 que certos comportamentos voltados contra a regularidade do processo eleitoral assemelham-se aos anteriormente indicados, no sentido de trazer riscos à democracia. São eles, a interrupção do processo eleitoral, art. 359-N e, também, a violência política, art. 359-P. O fato de que estes crimes todos foram incluídos em capítulo do Código Penal não desnatura, a nosso ver, o caráter político de que se revestem, atraindo, portanto, a competência da Justiça Federal, à luz do art. 109 da Constituição Federal (1).

A redação do tipo de violência política é a seguinte:

"Violência política

Art. 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
(VETADO)”

O surgimento deste novo tipo, com pena proporcional à gravidade do delito – 3 a 6 anos e multa, além da pena correspondente à violência – suscitou fundada dúvida sobre a permanência do tipo do art. 326-B do Código Eleitoral. Afinal, candidatar-se e exercer o mandato são direitos políticos por excelência, ombreados ao direito de votar e à liberdade de crítica, oposição política e criação de partidos políticos.

Terá, portanto, o novo tipo revogado o crime de violência política contra as mulheres?

Nossa resposta é negativa.

Trata-se de conflito aparente de normas resolvido pelo tradicional método da diferenciação entre norma genérica e norma específica. O art. 326-B do Código Eleitoral é específico em relação à condição de mulher, à candidatura e ao exercício de mandato. Do rol dos direitos políticos, estas especificações devem ser decotadas da abrangência do crime do art. 359-P. A violência impeditiva da candidatura, é crime político; o assédio, constrangimento, humilhação ou perseguição a uma candidatura já lançada ou a um mandato em vigência, trazem ao crime eleitoral.

Esta solução não é perfeita. É, apenas, menos ruim e, certamente, agrega à técnica jurídica considerações de funcionalidade e efetividade da proteção à mulher candidata e eleita.

A discrepância entre a pena insuficiente do crime de violência contra as mulheres e a pena adequada do crime de violência política até sugerem que seria preferível considerar revogado o primeiro. Todavia, essa interpretação conduziria a alguns problemas. O primeiro é que o tipo do art. 359-P exige “violência física, sexual ou psicológica”, condutas mais abertas do que o assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça”, “por qualquer meio”, do tipo do Código Eleitoral. Da mesma maneira, ao falar em "Restringir, impedir ou dificultar”, o crime político supõe uma gravidade mais severa do que o crime eleitoral. E, como é próprio do crime político, se sustentará a exigência de que a conduta tenha, ao menos potencialmente, a possibilidade de abalar o Estado Democrático de Direito. Assim, se for considerado revogado o tipo eleitoral, as condutas cotidianas de assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça às mulheres candidatas ou detentoras de mandato podem ficar sem punição específica. Por fim, se revogado o crime eleitoral, teremos esta incômoda situação segundo a qual comportamentos ilícitos propriamente eleitorais serão julgados pela Justiça Federal. A competência cindida para conhecer de temas recorrentes nas eleições não contribuirá para a efetividade da lei.

Malgrado seja nossa inclinação interpretativa, devemos indicar uma de suas consequências ruins: a desproteção do candidato homem e do exercente masculino de cargo eletivo. Como o crime de violência política do art. 326-B volta-se exclusivamente à proteção da mulher, ele não alcança o gênero masculino. E, se for ofertada para os homens a proteção do art. 359-P, termos a paradoxal situação na qual os homens – menos afetados pela violência política – terão proteção maior do que as mulheres, muito mais alcançadas por esta violência.

A solução que preconizamos depende do legislador: reconstruir o tipo do artigo 326-B para que ele ofereça proteção a todos os gêneros. A vantagem é, também, incluir no alcance da norma a violência contra homens e mulheres negros:

"Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata ou candidato a cargo eletivo, detentora ou detentor de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição gênero, ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra pessoa:
I - gestante;
II - maior de 60 (sessenta) anos;
III - com deficiência."

Aproveitamos e sugerimos limites de pena mais adequados.

___
(1) Em sentido diverso, a orientação de Rogério Sanches Cunha e Ricardo Silvares, no livro “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”, ed. Juspodivm, 2021. A argumentação é longa, mas pode ser sintetizada pelo seguinte trecho: “Concluímos que, num regime democrático, é dizer, num Estado Democrático de Direito, a ataque a este deve constituir crime comum, apesar da motivação política, sem sombra alguma de dignidade, merecendo, ao contrário, o opróbrio”, p. 15. Ora, a nosso ver, os crimes políticos, ao contrário dos crimes de responsabilidade, são comuns, no sentido de serem fatos típicos, ilícitos e culpáveis. O que vai caracterizá-los é justamente o bem jurídico protegido – o Estado democrático de Direito – e a motivação política.

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