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Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo

9 de Novembro às 13h55
Por Teofilo Tostes

Breve ensaio sobre as notícias falsas

Paulo Thadeu Gomes da Silva, Doutor em Direito, Procurador Regional da República em São Paulo

Fenômeno antigo, a emissão de notícias falsas ganha repercussão na sociedade atual por seus meios de disseminação, que são distintos daqueles tradicionalmente conhecidos, aos quais se juntam, por exemplo, as redes sociais e os aplicativos de mensagens. O evento se faz presente nas comunicações em geral, sem conhecer mesmo qualquer barreira de conteúdo especializado, o que quer dizer que vai da política à saúde pública, campos ou sistemas tão diferentes entre si quanto a água e o óleo, e tem a força de misturar tudo em uma geleia geral que faz com que não se separe mais a vida pública da privada, quando tudo, então, no dizer de Hill, torna-se político.

Não há como se refletir sobre o tema sem se pensar um pouco sobre a mentira em si mesma considerada no processo de comunicação. Pouco conhecida é a polêmica entre Kant e Constant, para quem, respectivamente, haveria um dever de dizer a verdade e um direito correlato. Kant mesmo chega a indicar as diferenças entre mentir por acaso e por ação livre, no primeiro caso, causa-se um dano, no segundo, uma injustiça. Já mais atualmente Luhmann afirma que o sistema de mass media tem de conviver com a suspeita de manipulação da informação – v.g., com a mentira – que acaba por gerar a ideia de que a verdade é coisa que se mantém na comunicação privada, mas não na pública, por exemplo, o caso Ricúpero, em 1994, título de capítulo de um de seus livros, no qual foi vazada inadvertidamente a afirmação do então Ministro da Economia, em plena campanha eleitoral, por uma parabólica – Luhmann diz mesmo ser uma diabólica! –, e que dizia que as declarações públicas não correspondiam às intenções reais – o Ministro caiu, mas o candidato Fernando Henrique Cardoso foi eleito.

Aqui já poder-se-ia indicar uma primeira problematização, representada pela ideia de que apenas a comunicação confere significado aos fatos e eventos. E afirmar isso implica assumir que pouco importa se a comunicação é privada ou pública, melhor dizendo, a depender do número de pessoas que são alcançadas por uma determinada mensagem, seu caráter privado é dissolvido e se transforma em público, v.g., mensagens veiculadas em grupos de aplicativos com milhares de inscritos. Já as redes sociais são públicas por natureza e constituição, o que leva mesmo a teoria atual a considerá-las como arena na qual o dissenso é produzido, isto é, esfera pública produtora de singularidades.

Nesse quadro comunicacional, a capacidade de disseminação e influência das mensagens é imensurável, portanto, além de gerar valor de uso e valor de troca, pode causar dano e injustiça – aqui Kant, como se vê, foi superado pelo Zeitgeist –, tanto mais quanto se pense em uma possibilidade de classificação de suas espécies. Essas mensagens podem ser vestidas com uma roupagem de notícia oficial, o que já atrai para sua análise a violação do direito fundamental à informação, uma espécie de versão forte da mentira publicamente comunicada, ou com uma roupagem de notícia não oficial, em geral sob formato de “meme”, uma espécie de versão fraca da mesma mentira, e que quase sempre carrega consigo um nonsense ou mesmo um absurdo se comparado à realidade que pretende demonstrar.

A versão forte da mentira publicamente comunicada tem um potencial mais agudo, superlativo se comparado à outra espécie, de causar dano e injustiça à sociedade como um todo, da qual é exemplo mentira veiculada por órgãos oficiais, seja por meio de organizações específicas, seja por meio de pessoas individualizadas investidas de mandato político, o que é consequência direta da autoridade que emana dessas fontes, as quais terminam por se constituir em uma autorização, uma Erlaubnis, para que as pessoas atingidas pela mentira determinem seus comportamentos de acordo em ela, comportamentos, portanto, sob o ponto de vista ético, nada edificantes porque falsos.

Esse tipo de versão forte viola diretamente o direito fundamental à informação previsto no artigo 5, inciso XIV, da Constituição e, em uma eventual colisão dessa norma com a tão mal e cinicamente esgrimida liberdade de expressão, deve sempre prevalecer sobre esta última. Os adjetivos negativos aqui lançados ao argumento de que estar-se-ia a praticar a liberdade de expressão se justificam com base em que a política se constitui ontologicamente de eventos e fatos que têm sua verdade estabelecida, e mentir deliberadamente sobre eles faz dessa mesma liberdade, nas palavras de Arendt, uma farsa.

Um outro aspecto importante do tema é que, por se tratar da verdade dos fatos, a verdade racional, segundo Arendt, é que é atingida pela mentira publicamente comunicada, pela mentira organizada. Esse ponto merece destaque porque em uma sociedade bem-ordenada, i.e., com uma democracia funcional, as doutrinas que se impõem como guias são aquelas compreensivas e razoáveis, vale dizer, aquelas identificadas e projetadas pela razão humana sobre a base da experiência, conforme escreve Marcuse, para quem o telos da tolerância é a verdade. Coincidência ou não, o objetivo das chamadas fake news é exatamente alimentar uma cadeia de ódio social expresso em uma forte e profunda intolerância contra grupos e instituições, ou seja, o telos da intolerância é a mentira.

Já a versão fraca da mentira publicamente comunicada pode tangenciar o âmbito de proteção do direito de liberdade de expressão, desde que se traduza, exclusivamente, por signos de humor e picardia, sempre a produzir um estado de incredulidade causado por uma afirmação absurda, o que pode mesmo vir a ser considerado como um equivalente funcional da violência.

O que vem de ser escrito demonstra que há distinções dos efeitos da mentira no político e no jurídico, pois no primeiro ela parece ter um campo mais alargado de aceitação, v.g., não se conhece alguém que tenha sido, após eleito, sancionado por não cumprir promessa de campanha, ainda que soubesse que estava a comunicar mentira quando candidato, aliás, nem mesmo sancionado politicamente, como demonstrado pelo episódio Ricúpero citado no início deste ensaio.

Seja num caso como noutro, certo é que a mentira, nas palavras do poeta russo Trediakóvski, é uma palavra dita contra a razão e a consciência e, só por isso, já merece ter um tratamento mais rigoroso por parte das instituições do Estado e da própria sociedade naquilo que diz com sua restrição, pois é por meio do estabelecimento de restrições que a confiança será protegida, desde que se pense, com algum acerto, que a mentira publicamente comunicada corrói o liame que mantém possível a ordem social: a confiança.

Aqui vale a máxima: quanto mais curta for a perna da mentira, mais a democracia será fortalecida.

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