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Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo

2 de Agosto às 13h55
Por Teofilo Tostes

Violência de gênero e imunidade parlamentar

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves - Procurador Regional da República | Procurador Auxiliar da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo

A intepretação jurídica muda com o tempo. Novos desafios, novas percepções, mudanças sociais, econômicas e culturais conduzem, de modo gradual e, às vezes, abrupto, a releituras de normas e conceitos do Direito. Tem sido assim com as imunidades parlamentares. A Constituição de 1988 consagra esse mecanismo de proteção da liberdade parlamentar em variados campos, desde a não responsabilização por crimes de opinião, art. 53, caput, até as limitações à prisão flagrancial, art. 53, I, e ao processo-crime, § 2, com o estabelecimento do foro por prerrogativa de função, § 1º., a desobrigação do testemunho, § 6º e o controle legislativo sobre a incorporação às Forças Armadas, § 7º. Essas garantias foram pensadas diante das realidades advindas da ditadura militar, período no qual sequer a garantia do exercício do mandato existia, como se pode ver em atos de força, como o tristemente famoso AI-5.

Até por esta razão, a interpretação dada às imunidades parlamentares pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi, a princípio, peculiarmente abrangente. Por exemplo, no Inquérito 398, julgado em 21.09.1989, Rel. Min. Octavio Galotti, Pleno, a Corte reconheceu que a imunidade material não se limitava a manifestações proferidas no recinto das casas legislativas: “

“IMPUTAÇÃO DE OFENSA DESFERIDA, FORA DO RECINTO DAS SESSÕES, POR DEPUTADO FEDERAL, A HONRA DE SENADOR, EM RAZÃO DE ENTRAVE QUE ESTARIA SENDO OPOSTO, PELO ÚLTIMO, A TRAMITAÇÃO DE PROJETO DE LEI. RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE MATERIAL (INVIOLABILIDADE), CONFERIDA PELO ART. 53 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988, DADA A VINCULAÇÃO EXISTENTE, NO CASO CONCRETO, ENTRE O DISCURSO QUESTIONADO E A ATIVIDADE PARLAMENTAR DO REPRESENTADO.”

Nessa mesma linha, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 210917, por exemplo, em 12.08.1998, a Corte, por seu Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, reconheceu que a imunidade material não se limitava a discursos e debates ocorridos no âmbito da casa legislativa, mas incluía:

“toda manifestação do congressista onde se possa identificar um laço de implicação recíproca entre o ato praticado, ainda que fora do estrito exercício do mandato, e a qualidade de mandatário político do agente” Assim, estavam protegidas pela imunidade “divulgação pela imprensa, por iniciativa do congressista ou de terceiros, do fato coberto pela inviolabilidade”.

Em relação a discursos, falas e debates dentro da casa legislativa, o Supremo chegou a decidir que: “É absoluta a inviolabilidade dos parlamentares por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, quando emitidos no âmbito da casa legislativa” - AI n. 350280, em 01.03.2011, Segunda Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa. No mesmo sentido, a Primeira Turma, Inq. 3814, em 07.10.2014, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber:

“2. Tratando-se de ofensas irrogadas no recinto do Parlamento, a imunidade material do art. 53, caput, da Constituição da República é absoluta. Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar”.

Fora do recinto parlamentar, é que se exigia o liame entre fala e função:

“Quando as palavras desabonadoras são proferidas fora do recinto destinado à representação parlamentar, a jurisprudência do STF exige um liame entre as declarações questionadas e o exercício de atividade política relacionada ao mandato, ainda que com este não guardem correlação formal.[...] - Embargos de Declaração em Agravo de Instrumento n. 657235, 2ª. Turma. Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 07.12.2010.

Inobstante, já havia precedentes do STF em sentido parcialmente distinto, exigindo pertinência entre fala e função independentemente do local:

“A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, "caput") - que representa um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício independente do mandato representativo - somente protege o membro do Congresso Nacional, qualquer que seja o âmbito espacial ("locus") em que este exerça a liberdade de opinião (ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa), nas hipóteses específicas em que as suas manifestações guardem conexão com o desempenho da função legislativa (prática "in officio") ou tenham sido proferidas em razão dela (prática "propter officium”[p...]” - Inq. 1024, Questão de Ordem, em 21.11.2002, o Min. Relator, Celso de Mello.

Aos poucos, essa segunda orientação é que veio a prevalecer na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, reconhecendo que a imunidade não acompanhava discursos feitos em campanhas eleitorais: Inq. 503 – QO, j. 24.06.1992, Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; AI 657235-ED, j. 07.12.2010, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa. E exigindo nexo de pertinência mesmo em manifestações dentro da casa legislativa:

“[...] o fato de o parlamentar estar na Casa legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, nos casos em que as ofensas são divulgadas pelo próprio parlamentar na Internet. (...) a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. (...) O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para o livre mercado de ofensas. A liberdade de expressão política dos parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade. Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação” - Petição n. 7.174, Primeira Turma. Rel. desig. Min. Marco Aurélio, j. 10.03.2020.

Essa relativização pode ser constatada, por igual, na decisão proferida na Petição n. 5.243-DF, Rel. Min. Luiz Fux, de 21.06.2016.

“13. In casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo, ao afirmar que “não estupraria” Deputada Federal porque ela “não merece”; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental, já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da imprensa e da internet”

Essa decisão merece destaque porque um dos fundamentos para recusar abrangência para a imunidade parlamentar foram as normas protetivas vindas de:

“[...] Tratados de proteção à vida, à integridade física e à dignidade da mulher, com destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - “Convenção de Belém do Pará” (1994); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – “Carta Internacional dos Direitos da Mulher” (1979)”e, bem assim, a Lei Maria da Penha, n. 11.340/2006.

A questão que se apresenta é se as normas sobre imunidade material, que protegem Senadores, Deputados Federais, estaduais e distritais e, no recinto do município, também os vereadores impedem o reconhecimento da tipicidade de condutas que caracterizam, a princípio, violência política de gênero.

A violência política contra as mulheres, infelizmente presente em nosso cenário político-eleitoral, veio, afinal, a ser tipificada pela Lei 14.192/2021, por meio de crime inserido no Código Eleitoral:

Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher:
I - gestante;
II - maior de 60 (sessenta) anos;
III - com deficiência.

Note-se que a norma estende sua proteção às mulheres “detentoras de mandatos eletivos”, ou seja, que estejam no exercício de cargos eletivos no Poder Legislativo ou Executivo.

De pronto, afirmamos que as imunidades não têm lugar diante de condutas de assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça, realizados fora dos recintos das casas legislativas, pois aí não haverá, sequer em tese, falar em nexo de pertinência com a função parlamentar.

E se, porém, alguma destas condutas típicas for praticada no recinto da casa legislativa? Por exemplo, diante de um debate entre parlamentares? Num discurso proferido por qualquer deles? Num ato regimental firmado pela casa legislativa?

O tema demanda, por evidente, cuidado no trato. Certamente o objetivo das normas protetivas da igualdade de gênero não é considerar qualquer deles distinto, menos competente, hábil ou capaz de tomar decisões, se defender e agir por conta própria.

As mulheres parlamentares se apresentam altivas para a defesa de seus pontos de vista, dos interesses dos seus eleitores, de suas convicções políticas. Não temem o debate, o discurso crítico, ainda que acerbo ou a manifestação de contrariedade às suas propostas e opiniões. São propositivas e independentes, distintas pessoal e politicamente entre si, buscando, cada qual à sua maneira, honrar o mandato que lhes deram os eleitores.

O que a tutela penal alcança são atuações preconceituosas, misóginas, justamente incompatíveis com o reconhecimento da igualdade e da dignidade dos gêneros. São ações que externam menosprezo ou discriminação à condição de mulher, praticadas com a “com a finalidade de dificultar o desempenho de seu mandato eletivo”.

Estariam tais condutas abusivas abrangidas pelas regras de imunidade material?

Nossa resposta é negativa.

Valemo-nos das mesmas normas protetivas mencionadas pelo Min. Fux na citada Petição n. 5.243-DF e, aqui, ao invés da Lei Maria da Penha, trazemos para o argumento a Lei 14.192/2021.

Pretendesse o legislador afastar a tipicidade em função da imunidade material, porque teria incluído na lei a proteção às mulheres “detentoras de mandatos eletivos”? Desconheceria ele a realidade de que no Congresso Nacional há mulheres deputadas e senadoras, embora poucas? Quando o detentor da imunidade, ele mesmo, estabelece norma que fala em assédio, constrangimento ou ameaça, teria se esquecido da própria imunidade ou oferecido, para ela, uma interpretação possível e redutora?

Não se pretende, evidentemente, sobrevalorizar a interpretação subjetiva ou histórica ligada à “vontade do legislador”. Justamente porque, como se diz no início deste artigo, a intepretação jurídica muda com o tempo. É só um elemento de argumentação.

Outro é justamente a necessidade de conformar a interpretação do alcance da imunidade parlamentar à uma visão atualizada de sua função e alcance..

Trata-se de um mecanismo para assegurar a desenvoltura e desassombro dos parlamentares, representantes eleitos da população, no exercício de suas funções próprias, sem temer interferências indevidas dos poderes executivo e judiciário. Assim, a crítica política, conquanto ácida, o livre debate sobre opções legislativas, o exercício da função típica de fiscalização parlamentar, a defesa livre de pontos de vista e visões de mundo, tudo isso está protegido em face de crimes de opinião, como a injúria, a calúnia e a difamação. Todavia, essa garantia não afasta a tipicidade de incitações ao crime, a prática de atos de violência ou discriminação.

A luta das mulheres pela igualdade e respeito não pode ser desconsiderada na interpretação atual do Direito, muito menos nos focos de tensão entre mecanismos de garantia de posições jurídicas diversas. A imunidade parlamentar deve ser lida à luz da igualdade política de gênero e não no sentido de propiciar situações de violência e preconceito.

Não podem ser considerados atos “propter officium” o assédio, o constrangimento, a humilhação e a ameaça a mulher parlamentar. São, ao revés, desvios da função parlamentar, em boa hora tornados típicos.

Assim, nos pronunciamos no sentido de que, presente o dolo específico de impedir ou dificultar o desempenho do mandato eletivo da mulher, as condutas descritas no art. 326-B do Código Eleitoral, praticadas fora ou dentro do ambiente das casas parlamentares, são típicas. Elas não estão protegidas pela imunidade material dos senadores, deputados federais, estaduais ou distritais ou, no âmbito dos municípios, dos vereadores.

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