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3ª Região

Mato Grosso do Sul e São Paulo

19 de Abril de 2010 às 15h46

Boletim Especial: Dia do Índio, Pouco a se Comemorar

 

19/04/2010

Rodrigo Rodrigues Pereira
Teofilo Tostes Daniel
Leonardo Polo
Mariana Gabellini


Em 1910 o Brasil criava o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), idealizado pelo marechal Cândido Rondon, e dava assim os primeiros passos na proteção dos direitos indígenas. O órgão previa uma mudança no tratamento destinado aos índios, abordando em seu regulamento pontos como a autodeterminação desses povos, respeito a seu desenvolvimento espontâneo e de seu patrimônio cultural.

Mas a finalidade principal do SPI era a mediação dos conflitos de posse de terra que surgiam com as frentes de ocupação promovidas pelo governo à época e, na prática, teve um papel bastante assistencialista. Infelizmente, 100 anos depois, a situação dos indígenas continua crítica e as previsões estatutárias do extinto SPI estão muito longe de serem alcançadas. Embora a legislação tenha evoluído muito no período, principalmente com o advento da Constituição de 1988, a questão da demarcação de terras continua permeada por indefinições, tensões e conflitos, com litígios tramitando por décadas no Judiciário.

Levantamento feito pela Procuradoria Regional da República da 3ª Região (PRR-3) em 2009 contabilizou 87 processos envolvendo disputas de terras indígenas tramitando apenas no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (segunda instância da Justiça Federal para os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul). Esse quadro demonstra que ainda há muito o que se fazer, e talvez, pouco a se comemorar no dia 19 de abril. A data lembra a realização do I Congresso Indigenista Interamericano, realizado há 70 anos na cidade de Pátzguaro, no México. Embora não tenha participado, o Brasil adotou a data do congresso para criar o Dia do Índio, instituído em 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, a partir do decreto-lei nº 5.540.

A Constituição de 1988 representou um salto na legislação em relação aos direitos indígenas, com avanços como a garantia à terra e ao modo de vida dos grupos étnicos – resultado de reivindicações de movimentos dos próprios indígenas e entidades que os apóiam. E foi a Carta Constitucional, também, que atribuiu ao Ministério Público Federal a defesa dos direitos e interesses das populações indígenas. Hoje o MPF tem um órgão específico na promoção e defesa dos direitos indígenas, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, com iniciativas relacionadas à saúde, educação e ao registro civil. 

Além de mostrar a atuação do MPF na defesa dos direitos indígenas, o boletim traz entrevistas com o procurador da República Emerson Kalif Siqueira (PR-MS) e com o procurador regional da República Paulo Thadeu Gomes da Silva (PRR-3), com o antropólogo Francisco Carlos de Oliveira Reis, da Procuradoria da República em São Paulo (PR-SP), e com a antropóloga Maria de Loudes Beldi de Alcântara, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP). E tenta colocar a perspectiva dos índios sobre sua atual situação, expectativas e visão que têm das leis, do sistema judiciário, organismos públicos criados para atendê-los e de sua convivência com não-índios. Para isso, foi realizada uma entrevista com uma jovem indígena de Dourados (MS) que concorre a um prêmio internacional por um blog em que conta o dia-a-dia de sua reserva, além de uma visita à menor aldeia indígena do País, a Tekoa Pyaú, no Jaraguá, zona norte da capital paulista.

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Luta pela Terra

Os conflitos envolvendo disputas de terras indígenas, uma constante para vários povos, não se limitam ao terreno jurídico. Ameaças, agressões e violências contra os índios também são práticas comuns e por vezes toleradas pela sociedade. Um exemplo disso foi o assassinato do cacique guarani kaiowá Marcos Veron no município de Juti (MS), em janeiro de 2003. Então com 72 anos, o cacique foi morto após ataque de quatro homens armados contratados para expulsar os índios do acampamento Takuara, localizado na fazenda Brasília do Sul.

Veron e outras lideranças foram ameaçadas, agredidas e espancadas pelos capangas, que também atiraram contra os índios. Ele ainda foi socorrido mas, com traumatismo craniano, não resistiu e morreu no hospital. Em fevereiro do ano passado, o TRF-3 decidiu que o Tribunal do Júri deveria ocorrer na capital paulista. Seria a única forma de garantir a imparcialidade dos jurados e evitar que a decisão sofresse influência social e econômica dos supostos envolvidos no crime. Para os desembargadores que determinaram o desaforamento (nome técnico para a transferência do Júri), mesmo a capital do Estado de Mato Grosso do Sul nutria uma aversão aos índios que comprometeria o júri. “Desta vez estará garantido um julgamento justo,  independentemente da condenação ou absolvição dos acusados”, avaliou o procurador da República Emerson Kalif Siqueira.

“A despeito do preconceito que ainda existe em alguns setores da mídia, há segmentos mais esclarecidos da população e de formadores de opinião que  já se conscientizaram e veem até com empatia o encaminhamento dos problemas que tocam o universo indígena. No recente episódio de desaforamento do juri dos acusados da morte do cacique Guarani-Kaiowá Marcos Veron, graças à atuação do MPF  foi possível demonstrar, ainda que o caso não tenha sido julgado, que está ao alcance das instituições fazer prevalecer a justiça no encaminhamento dos conflitos e se resguardar o respeito que essas populações merecem”, analisou o antropólogo Francisco Carlos Oliveira Reis, da Procuradoria da República em São Paulo (PR-SP).

O julgamento, marcado para começar no dia 12 de abril na 1ª Vara Federal, foi adiado para o dia 3 de maio em razão da ausência de um dos advogados da defesa, que apresentou atestado médico em que alega passar por tratamento psicoterápico. A juíza que concedeu o adiamento determinou que a nova data não será alterada, mesmo com eventual ausência dos advogados.

Emblemático, o caso de Veron não é exceção em Mato Grosso do Sul. O Estado tem a segunda maior população indígena do País, atrás apenas do Amazonas. Mas é a unidade da Federação que concentra o maior número de conflitos envolvendo terras tradicionalmente indígenas e está no foco das discussões desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à Raposa Serra do Sol, reserva de Roraima. “A gente examina com certa apreensão o que vem acontecendo após o julgamento da Raposa Terra do Sol porque nem mesmo aquilo que foi escrito na decisão do Supremo tem sido observado na apreciação dessa questão”, diz Siqueira, que atua na Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul (PR-MS) e critica a interpretação parcial que os advogados de grupos de fazendeiros veem fazendo da decisão do STF.

Entre os fatores para tantos conflitos em MS, explica o procurador, estão questões históricas como a  Guerra do Paraguai ou o modelo de colonização da região, e, mais recentemente, a expansão do agronegócio. Embora as reservas ocupem hoje 1,71% da área do Estado e com  a estimativa de que com o dobro desse valor todos os povos indígenas estariam bem contemplados em Mato Grosso do Sul, os índios são considerados uma ameaça à agroindústria, vistos como um entrave ao desenvolvimento e à economia local.

“Então tudo que envolve a terra, tudo que confronta o agronegócio é tido como uma ameça, porque economicamente o Estado é dependente da terra, da exploração agropecuária. Então a sociedade (sul-mato-grossense) de uma maneira geral não quer terra para o índio”, avalia Siqueira.

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O procurador regional da República Paulo Thadeu Gomes da Silva acrescenta que “em Mato Grosso do Sul e em todo o Brasil ainda predomina uma visão de absolutização do direito de propriedade em detrimento do princípio da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade. E isso é impregnado atavicamente à história brasileira.”

A antropóloga Maria de Lourdes Beldi de Alcântara explica que o preconceito das sociedades rurais contra o índio é muito grande porque, e para elas, os indígenas significam o atraso e a barbárie. “Tudo o que tem de ruim na cidade é culpa deles (índios), eles precisam sair daqui para que a cidade se torne desenvolvida. É essa a mentalidade de uma suposta 'elite' e da maioria da população em relação aos indígenas”, constata Maria de Louders.

O procurador Emerson Siqueira também lembra que a demora do Judiciário para resolver as questões da terra indígena gera um clima de incerteza, o que é um agravante para esses conflitos de terra que acontecem não apenas em Mato Grosso do Sul, mas em todo o Brasil. “Isso é desestimulante, porque o filho, neto desse indígena, passam a não acreditar no Estado brasileiro de uma forma geral, nas instituições, e aí consequentemente, nas autoridades que integram essas instituições”, explica o procurador.

“As dificuldades que se colocam se referem a uma atuação do Poder Judiciário bastante limitada no que diz com a matéria do direito indígena, constituindo-se, em alguns casos, em verdadeiro impedimento a que se concretize o direito fundamental do índio ao seu território”, observa o Paulo Thadeu. Com atribuição de atuar no TRF-3, o procurador lembra que o fato do Tribunal estar localizado na capital paulista, “e portanto distante do poder local de Mato Grosso do Sul, na maioria das vezes produz decisões consistentes em favor dos índios, contudo, há situações em que o Judiciário serve como impedimento à concretização do direito básico de acesso à terra”.


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Como exemplos Paulo Thadeu cita um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado há dois anos com a Funai para a demarcação de todas as terras Guarani no sul do Estado de MS. “Até hoje nenhum trabalho demarcatório conseguiu se iniciar por causa da proliferação de liminares. Penso que essa questão não deveria ser levada ao Judiciário, mas ficar na costura extrajudicial de um grande acordo para que se efetivassem as medidas necessárias. O Poder Judiciário, nesse tipo de questão, é desnecessário”, opina.

Na prática a intolerância e preconceito em Mato Grosso do Sul resultam em instalação de comunidades na beira de estradas, conflitos no campo e outros tipos de violência. Para Siqueira, no entanto, os produtores rurais de Mato Grosso do Sul vão acabar aceitando um novo modelo de relação exatamente pelo motivo que hoje levantam para hostilizar os índios – o próprio bolso. “É um tiro no pé. Vai chegar a hora que nenhum organismo de fomento, nenhuma instituição financeira de desenvolvimento vai querer investir, entregar para aplicação ou investimento se aquele suposto desenvolvimento sacrificar as comunidades indígenas, se na área ainda tiver esse tipo de conflito”, prevê Siqueira.

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Paulo Thadeu segue a mesma linha de raciocínio, afirmando que o mesmo sistema que prejudicou historicamente os índios hoje começa a auxiliá-los. “Num primeiro momento o capitalismo lançou como óbice ao reconhecimento das terras indígenas o fato de que os índios não produzem excedentes, sendo, por isso, impedimento à concretização de uma ordem econômica globalizada; hoje, com o ainda tímido e gradual reconhecimento das terras indígenas, o capitalismo trabalha com a ideia de fair trade, ou seja, comprar produtos apenas daquelas áreas que respeitam os direitos indígenas, o que demonstra que a capacidade de se reinventar é infinita para o capitalismo.”

O procurador Emerson Siqueira lembra ainda que o mesmo fazendeiro que briga pela terra na Justiça, ameaça as comunidades com capangas e tacha o índio como vagabundo, avesso ao trabalho, é o mesmo que se vale de sua mão-de-obra. “Quem fornece mais mão-de-obra para as usinas canavieiras, que a gente sabe que é o trabalho muito próximo do trabalho escravo, degradante, que é o trabalho com a cana de açúcar, são os índios. E eu não conheço empregador bobo que contrata cara que não trabalha. Isso, na minha visão, desmente qualquer um que afirma que eles não gostam do trabalho duro ou não querem saber de trabalho”, exemplifica.

A antropóloga Maria de Lourdes também critica as “elites iluminadas” dos grandes centros urbanos, que enxergam os índios de forma idealizada, principalmente após o surgimento de movimentos ecológicos. “Elegem as populações indígenas como as 'grandes respeitadoras' das florestas. Penso que as coisas não são bem assim”, contesta a antropóloga. “Essa população elitizada, de uma certa forma, não sabe que a metade da população indígena do País vive nas cidades, em péssimas condições de vida, abaixo da pobreza”.


A Realidade Paulista

Maior, mais rico, desenvolvido e urbanizado Estado do País, São Paulo, paradoxalmente, registra fatos e números bastante negativos em relação a populações indígenas. É na capital paulista, por exemplo, que se encontra a menor aldeia indígena do Brasil, a do Jaraguá. E é também onde se concentra o maior contingente de índios, principalmente no Nordeste, que deixaram suas terras para tentar uma vida um pouco melhor na cidade para si e para quem ficou na aldeia. Segundo o último censo do IBGE, de 2000, havia uma população de 63.789 indígenas no Estado de São Paulo, dos quais cerca de 3.800 residiam em aldeias e o restante vivia na Região metropolitana de São Paulo.

“Em São Paulo ocorre um fenômeno curioso que é o fato da importância econômica e social do Estado atrair um contingente expressivo de indígenas do Nordeste, Norte e Centro-Oeste que pra cá vêm trabalhar, estudar, fazer tratamento de saúde entre outros motivos”, constata o antropólogo Francisco Carlos Oliveira Reis, da PR-SP.

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Para diagnosticar problemas e demandas dos índios residentes em São Paulo, a Comissão Pró Índio de São Paulo (CPI-SP) realizou oficina que resultou em um relatório que também abordou os motivos que levaram os índios a migrarem para capital paulista, regiões da cidade em que se instalaram, as condições em que se encontram e até os costumes que mantém mesmo longe da aldeia.

“A oficina foi pautada pela premissa de que o fato de os índios se encontrarem nas cidades não os torna 'menos índios' nem os torna desprovidos de direitos”, registrou a CPI-SP na apresentação de seu relatório. O trabalho, que reuniu índios de diversas etnias para a oficina, constatou que “apesar do preconceito que enfrentam, muitos dos índios que vivem em São Paulo não escondem sua identidade indígena”.

Os Pankararu, por exemplo, repetem as celebrações que faziam na Aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco, na cidade de São Paulo. Os Fulni-ô e os Kariri-Xocó, em compensação, retornam para suas aldeias ao menos uma vez por ano para o principal ritual religioso de seu povo, o Ouricuri. Se por um lado isso permite que os índios preservem sua cultura e identidade, por outro provoca estranheza e desconfiança da população branca, uma vez que os índios incorporam usos e costumes da cidade.

“Em termos gerais, a população paulista, tanto da capital quanto do interior do Estado, quando confrontada com a existência de populações indígenas no Estado tende a reagir com surpresa ou a velha incredulidade quanto à veraz  identidade dessas populações, já que um índio com celular, que escreve em blog,  ingressa em juízo e realiza tantas outras 'atividades de branco' dificilmente é o índio cândido, infantilizado e isolado na mata que parte da mídia e dos maus livros didáticos ajudou a lhe incutir”, constata Francisco Reis.

“Acontece que os índios consomem esses produtos e recorrem às nossas ferramentas de luta como parte e não substituto do seu mundo, pois não se pode esquecer que o fetichismo da mercadoria não é uma invenção dos índios”, complementa o antropólogo, que vê com bons olhos essa imersão do índio em parte da cultura não-índia. “Eu vejo até com otimismo os índios saberem manejar cada vez com mais maestria as ferramentas do mundo dos brancos como um modo de cada um desses grupos perseverar e reinventar seu modo de ser e de viver. Afinal, deliberar sobre seu próprio destino sociocultural é um direito que lhes cabe e a mais ninguém.”

Destino que se mostra bastante duro a esses índios. Segundo o relatório da CPI-SP, os índios se concentram na periferia e, “além dos problemas encontrados pela população” dessas regiões de uma forma geral, como falta de emprego, condições precárias de moradia, violência, falta de assistência à saúde, “também enfrentam problemas específicos, como a invisibilidade perante a sociedade em geral, a desconsideração do poder público, o questionamento de suas identidades étnicas e a falta de um espaço coletivo para suas manifestações culturais.”

Embora não enfrentem uma situação de conflito como a dos índios em Mato Grosso do Sul, a população indígena paulista em aldeias também sofre com as pendências judiciais envolvendo a posse da terra e a falta de espaço para sua reprodução física e cultural. Segundo o antropólogo da PR-SP, o Estado conta hoje com 35 áreas indígenas, com apenas 10 delas homologadas, onde vivem aproximadamente 4.000 índios. As 25 áreas ainda não regularizadas estão em situação de “ocupação”, “em identificação” ou “em demarcação”.

“Desse contingente, os Guarani-Mbya e os Guarani-Nhandeva são os maiores grupos, vindo depois os Terena, os Kaingang e os Krenak. Esses três últimos residem no Oeste Paulista, ao passo que os dois maiores estão espalhados pela Capital, Baixada Santista, Litoral Norte, Vale do Ribeira e no Complexo Estuarino Lagunar Cananéia-Iguape”, detalha Francisco Reis.

Ele reafirma a importância da posse regularizada das terras para as comunidades indígenas, uma “dívida histórica da sociedade brasileira com as sociedades indígenas não se dará por saldada enquanto a União não cumprir sua obrigação de demarcar as terras indígenas - que aliás o ADCT-67 da Constituição Federal de 1988 estipulava um prazo de 5 anos a partir da promulgação da Carta”.
Mas faz o alerta de que os problemas enfrentados são muito mais amplos.

“Apesar da terra ser a questão que mais projeta os índios na mídia, a luta pela melhoria do atendimento à saúde básica, que apesar de nos últimos anos ter levado a uma melhoria na cobertura vacinal e queda nos índices de mortalidade infantil, ainda chega de forma precária às aldeias e a educação bilíngue diferenciada se tornaram indissociáveis de qualquer luta pela reprodução física e cultural”, defende o antropólogo.

Ele critica os últimos governos pelos cortes orçamentários e esvaziamento de funções da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal responsável pela execução da política indigenista. “Administrativamente ficou desacreditado por falta de concurso público para a renovação de seu quadro de pessoal”, constata. “Ainda assim, a Funai, além de ser o órgão de mediação entre a sociedade indígena e os diversos agentes da sociedade nacional, é o órgão responsável por demarcar, assegurar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, conclui Francisco Reis. 


A Aldeia na Metrópole

Na cultura Guarani Mbyá o espaço tem muito valor não só pelos recursos necessários extraídos da natureza para a sobrevivência, obtidos através da coleta, caça e pesca. Mas também pelos sinais que essa natureza envia e são interpretados pelos índios, como “o som dos passarinhos”. Na pequena – pelo critério da área, por ter menos de dois hectares – mas muito povoada aldeia indígena Tekoa Pyaú, 72 famílias, repletas de crianças, não têm como cultuar tais valores, que só se preservam porque a tradição de respeito aos mais velhos e de transmissão de conhecimento às novas gerações está presente e ainda é muito marcante entre eles.

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Localizada em um espaço ainda não demarcado, próximo ao Pico do Jaraguá, zona norte do município de São Paulo (SP), e separada apenas por um muro da movimentada rodovia dos Bandeirantes, a aldeia é marcada pelo conglomerado de pequenos barracos, a maior parte erguida com pedaços de madeira, compensado e telhas de amianto, erguidos sob terra batida e com pequenas hortas ou pés de cana e bananeiras nos poucos espaços ainda não edificados. Os banheiros são todos construídos sobre fossas porque nenhum órgão governamental pode fazer obras de saneamento sem a regularização da terra. Outras poucas árvores servem de ponto de reunião para famílias conversarem – entre eles sempre em guarani – ou para prepararem artesanato, que é vendido na própria aldeia ou no centro de São Paulo e representa a principal fonte de renda da comunidade do Tekoa Pyaú.

“O espaço é pequeno, não dá para fazer nada de plantio”, afirma Vitor Kanaí-Mirim, de 27 anos, vice-cacique da aldeia e vice-presidente da Associação Ambauerá, criada pelos próprios indígenas para defesa de seus interesses. Ele mostra, com orgulho, poucos pés de cana plantados por ele encostados à cerca que isola uma caixa d'água. E dispara. “A gente gostaria de ter um lugar grande para viver melhor.”

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Alízio Tupã-Mirim, de 52 anos, membro da comunidade, explica que a falta de espaço é muito prejudicial por impedir que os mais jovens consigam aprender o modo de vida que os mais velhos costumavam levar – uma tradição de mais de 500 anos. A realidade da aldeia hoje é a do barulho intermitente dos carros e caminhões que trafegam em alta velocidade pela rodovia, ao latido da grande quantidade de cães abandonados que são adotados pelas crianças da aldeia e também pelo tráfego aéreo, intenso, de jatos comerciais e helicópteros.

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Vitor aprendeu a experiência com o plantio em outras terras indígenas, como as localizadas no município de Ubatuba, litoral norte de São Paulo, ou mesmo no litoral sul do Estado e no Paraná.  O contato com membros de outras tribos e o costume de se movimentar por diferentes terras indígenas, a chamada “perambulação”, é outra característica que mantém viva. “O forte dos guarani sempre foi esse”, declara o vice-cacique.

Da rua que dá acesso à tribo é possível ver uma grande edificação que destoa de todos os barracos da aldeia. Construída e mantida pela Prefeitura de São Paulo, o Centro de Educação de Cultura Indigena (Ceci) simula uma arquitetura que seria indígena, com cobertura de palha e paredes circulares – de alvenaria e janelas de vidro –, o que não é possível verificar no restante da aldeia. De tradicional, e construído pelos próprios indígenas, apenas o centro de rezas, feito de madeira e taipa sobre a terra batida.

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Apesar da evidente precariedade das casas, muitas possuem energia elétrica e televisão. Um campo de futebol de terra e uma quadra cimentada, onde sempre há crianças brincando, completam o cenário da gleba, ocupada há cerca de 10 anos.

“No começo, as pessoas da vizinhança não respeitavam a gente, ameaçavam, apareciam vários donos da terra, mas nenhum tinha comprovante”, lembra Vitor. No fim de agosto, por exemplo, o TRF-3 seguiu manifestação do MPF e negaram recurso de dois posseiros que alegavam ser donos das terras ocupadas. “Falavam que era deles, queriam que a gente saísse, mas não tinham nenhum documento provando isso”, recorda o vice cacique.

Ele afirma que atualmente a situação mudou e que passaram a ser mais respeitados. Mas lamentam o preconceito que ainda sofrem, ou mesmo o completo desconhecimento da existência deles. “Tem gente que vem há anos visitar o parque do Jaraguá e até hoje não sabem que estamos aqui”, exemplifica Willian Uerá-Mirim, de 37 anos, outro membro da comunidade e da associação. Para ele, a aldeia poderia ser incluída nos programas turísticos da região, o que poderia aumentar a venda de artesanatos e, consequentemente, a renda deles. 

Futuro
As crianças são educadas dentro da aldeia até os 6 anos, apenas no idioma guarani e aprendem cultura, história e artesanato. Após essa idade, são enviadas à escola estadual, onde aprendem o português. De acordo com Vitor, a maior dificuldade para os estudos das crianças é o preconceito por parte das crianças não-índias. A discriminação também impede que os guaranis arrumem trabalho fora da aldeia. Além disso, “o guarani pensa mais em cuidar da família, não se preocupa com o lucro”.
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Uerá-Mirim explica ainda uma iniciativa para tentar diminuir a distância existente com o não índio da metrópole. O primeiro passo foi a promoção de visitas de escolas da capital à aldeia. Há um ano o programa avançou e hoje as crianças da aldeia também visitam uma escola pública e outras particulares dos não índios. Pai de quatro filhos, Uerá-Mirim demonstra preocupação com o futuro e acredita que o melhor caminho é prepará-los com a realidade e tecnologias dos não-índios. E não tem qualquer temor de que isso os afaste da aldeia ou de sua cultura. “Todas as pessoas que estão estudando tem essa visão, de conhecer o mundo não-índio para depois aplicar aqui dentro da aldeia”

Ele conta que os mais jovens têm muita liberdade, mas são ensinados desde cedo a respeitar os mais velhos e instruídos a não se envolverem muito com a cultura não-índia. “A gente também tem muito medo da violência”. A liberdade observada dentro da aldeia é possível, complementa Uerá-Mirim, graças à cooperação que vigora na aldeia: se alguns adultos vão à cidade vender artesanato, os que ficam na aldeia se encarregam de ficar sempre de olho em seus filhos crianças, impedindo que as crianças saiam dos limites da aldeia e se arrisquem na movimentada Bandeirantes, ou na estrada turística do Jaraguá, que também serpenteia a aldeia.

Para defender seus interesses, os índios criaram a Associação Ambauerá. “A Funai ajuda um pouco na questão da demarcação, podia ajudar mais”, dtrês filhosefende Vitor. “Por isso que a gente fez a nossa associação, para não precisar mais deles. A gente já consegue marcar reuniões pela nossa própria associação.” Ele conta que um integrante da aldeia está na faculdade de direito e, assim que estiver formado, deve assumir as questões jurídicas levantadas pela associação para a defesa dos interesses da aldeia.

A maioria dos índios vive do artesanato, vendido no centro da cidade, ou em feiras e eventos. E diante das inúmeras limitações, a matéria prima é geralmente obtida por meio de parentes que vivem em outras terras indígenas. “O mundo hoje em dia é muito competitivo, até para o não-índio. Tem que saber mexer com o computador, tem que estudar", lembrou Uerá-Mirim.

Para suprir essas dificuldades existem projetos como o de montar estúdios de rádio e televisão para ensinar crianças de 7 a 13 anos da aldeia. “Já conseguimos o espaço”, completou ele. E essa não é a única tecnologia que chega aos índios. É bastante comum ver os membros da aldeia falando ao celular e ouvindo música no rádio, em volume consideravelmente alto – uma vez que o som dos automóveis também é elevado dentro da aldeia.

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Uerá-Mirim lembrou que esse conhecimento do mundo é essencial para a continuidade da aldeia. “Aqui não dá para caçar nem pescar, então a gente tem que preparar as crianças e os adolescentes para que eles estudem e possam defender sua aldeia e seu povo”. De acordo com ele, além do jovem que está atualmente cursando direito, outra jovem guarani se formou em pedagogia e dirige a escola da aldeia. “Eles precisam conhecer o mundo lá fora e aplicar aqui dentro”.

Sobre a demora para demarcação de terras e o futuro dos filhos – o mais velho tem 13 anos e a mais nova 2 – Uerá-Mirim é bastante otimista. “Já tivemos 500 e poucos anos de paciência. Que mal tem esperar mais um pouquinho?”.


Veja também as entrevistas com:

Emerson Kalif Siqueira, procurador da República em Mato Grosso do Sul
Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP)
Jaqueline Gonçalves, responsável pelo blog da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI)


Veja também:

Revista digital do MPF-MS sobre o Dia do Índio


Veja a galeria de fotos:

Galeria de fotos da visita da PRR-3 a aldeia no Jaraguá





 

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