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Arqueologia e MPF-Arq

 

IMPORTÂNCIA, ARCABOUÇOU NORMATIVO E ENDOSSO

 

A Constituição da República explicitou, em seu artigo 216, que os sítios arqueológicos são elementos do conceito de “patrimônio cultural”. A Lei 3.924/61 regulamentou a matéria, protegendo esse recorte do patrimônio de per si. Vale dizer, não há necessidade de tombamento de tais sítios para sua proteção, a qual se concretiza ex vi lege. Noutra ponta, ao IPHAN cabe o exercício primário da fiscalização em tal seara, inclusive delimitando, através do cadastro de sítios, tudo que é efetivamente de interesse para entender nossa evolução e preservar a memória (artigo 27).

A Lei nº 7.542, de 1986 também trata da mesma temática, mas voltada substancialmente ao patrimônio subaquático.

            A Carta para Proteção e Gestão do Patrimônio Arqueológico, ICOMOS, Lausanne, 1990, traz o conteúdo da locução “patrimônio arqueológico”:



            “(...)compreende a porção do patrimônio material para a qual os métodos da arqueologia fornecem os conhecimentos primários. Engloba todos os vestígios da existência humana e interessa todos os lugares onde há indícios de atividades humanas não importando quais sejam elas, estruturais e vestígios abandonados de todo o tipo, na superfície ou sob as águas, assim como o material a eles associados.”



Tão importante recorte do nosso patrimônio cultural é protegido, mediante o exercício do poder de polícia administrativa, primeiramente pelo IPHAN. O lastro para tal poder é a inserção da arqueologia como um elemento, frise-se, do patrimônio cultural bem como a própria Lei 3.924/6, que se reporta à atribuição da autarquia federal em diversos momentos. Além disso, a Recomendação sobre a conservação dos bens culturais ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas, exarada pela Conferência Geral da UNESCO, em sua 15ª Sessão, em Paris, datada de 19 de novembro de 1968, afirma que os países que compõem o referido organismo internacional devem assegurar seja realizado o  salvamento ou resgate dos bens culturais situados em local que deva ser transformado pela execução de obras públicas ou privadas. Há, por oportuno, rol exemplificativo de tais interferências, como as obras de expansão ou renovação urbana, a construção ou alteração de vias de grande circulação, a construção de barragens para irrigação, produção de energia hidrelétrica ou controle de inundações, a construção de oleodutos e de linhas de transmissão de energia elétrica, os trabalhos agrícolas, como a aradura profunda de terras, as operações de ressecação e de irrigação, desmatamento e nivelamento de terras e reflorestamento, bem como os trabalhos exigidos pelo desenvolvimento da indústria e pelos progressos técnicos das sociedades industrializadas, como a construção de aeródromos, exploração de minas e pedreiras e a dragagem e recuperação de canais e de portos.

Se tais argumentos seriam suficientes para delimitar a atribuição do MPF para tratar do tema, outro, vinculado à dominialidade do bem, também pode servir como fundamento para tanto, a depender da abordagem, a saber, o “material arqueológico” é bem da União por força do artigo 20, inciso X, da Constituição da República.

Nos últimos anos vem ganhando força o que se costumou chamar de “arqueologia de contrato”. Para além da mera pesquisa acadêmica, a arqueologia passa a ser um dos elementos de estudo no curso dos licenciamentos ambientais, na busca de se evitar, mitigar e/ou compensar danos. Faz-se necessário acompanhamento minudente pela autarquia federal, possibilitando o estudo da área a ser afetada, eventual resgate de material, sua análise e a extroversão do conhecimento dele oriundo.

Nesta senda, o IPHAN publicou três portarias que normatizam o tema, a saber, 07/88, 28/2003 e a 230/2002. Esta última foi revogada, recentemente, pela IN 01/2015. É comum, todavia, observar-se descompasso entre as etapas estabelecidas por tais normativos com aquelas do licenciamento ambiental, em atropelo que poderá levar a perdas de significativos elementos de nossa cultura. Podemos resumir as atividades da seguinte forma:

Anteriormente à concessão da licença prévia deve ser realizada a pesquisa da área direta e indiretamente afetada. Esta fase é comumente chamada de diagnóstico e, geralmente, é realizada concomitantemente aos próprios estudos de impacto ambiental.



O diagnóstico arqueológico consiste na contextualização arqueológica e etnohistórica da região de influência de um empreendimento a partir do levantamento de dados secundários e reconhecimento da área em campo de forma não interventiva no solo. Esse estudo é realizado no momento anterior à concessão de Licença Prévia (LP) e, em geral, é realizado simultaneamente à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).

O diagnóstico permite a avaliação dos impactos do empreendimento sobre o patrimônio arqueológico da área de estudo e a definição dos programas (Prospecção/Monitoramento/Resgate) a serem desenvolvidos, sendo estes compatíveis com o licenciamento ambiental1



Ao depois, já obtida a licença prévia e antes da concessão da licença de instalação, e em virtude da existência de potencial arqueológico alto da área, ou mesmo do registro de sítios no cadastro nacional de sítios arqueológicos, pode ser necessária a prospecção.



A prospecção arqueológica consiste em um programa de intervenções intensivas no subsolo em compartimentos ambientais de maior potencial arqueológico da área de influência direta de um empreendimento e nos locais que sofrerão impactos indiretos potencialmente lesivos ao patrimônio arqueológico. Esse trabalho é desenvolvido após a obtenção de Licença Prévia (LP) e antes da concessão de Licença de Instalação (LI), e seu principal objetivo é estimar a quantidade de sítios arqueológicos existentes nas áreas a serem afetadas por um empreendimento, realizando, assim, uma caracterização detalhada desses sítios. 2



Emitida a licença de instalação, e caso encontrado material arqueológico, é realizado o resgate.



No resgate arqueológico são realizados os trabalhos de salvamento arqueológico nos sítios identificados nas etapas anteriores. O resgate ocorre após a obtenção da Licença de Instalação (LI), ou seja, durante a implantação do empreendimento, contemplando escavações exaustivas, registro de cada sítio e seu entorno, coleta de vestígios e material arqueológico.

Os materiais coletados em campo passam por trabalhos de laboratório e gabinete, tais como limpeza, triagem, registro, análise, interpretação, acondicionamento adequado, bem como Programa de Educação Patrimonial A guarda do material deve ser garantida pelo empreendedor, seja mediante investimento em unidades existentes, seja pela construção de unidades museológicas próprias.

Após a aprovação do relatório comprobatório das atividades executadas durante o resgate/salvamento arqueológico, o empreendimento torna-se apto a obter a Licença de Operação (LO) pelo órgão ambiental competente. 3



A importância do sítio arqueológico poderá, contudo, demandar a escolha de outra alternativa locacional que não aquela apontada pelo empreendedor como mais viável diante de critérios outros, geralmente econômicos, ou mesmo pelo licenciador originário, razão pela qual demonstra-se a necessidade de trabalho conjunto e coordenado das esferas distintas de poder – e desde, frise-se, o início das tratativas.  Assim, a vinculação de tais etapas – diagnóstico, prospecção e resgate – às três fases do licenciamento – prévia, instalação e operação – nem sempre será verificada na prática, tendo a equiparação caráter indicativo. O diagnóstico, e mesmo a prospecção, poderão apontar para a necessidade de modificação da alternativa locacional, por exemplo, de determinado empreendimento, em função do princípio da conservação in situ.

Com efeito, se é certo que as Cartas Internacionais não possuem força coercitiva, não menos certo é afirmar que servem como base principiológica e norte para a atuação dos diversos atores. Nessa discussão insere-se, então, o princípio da conservação in situ, contido na Recomendação de Nova Delhi, exarada na 9ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 1965, o qual:



atribui ao Estado a obrigação de manutenção de um determinado número de sítios arqueológicos, de diversas épocas, intactos, total ou parcialmente, para que sua exploração possa ser beneficiada pelos progressos da técnica e pelo avanço dos conhecimentos arqueológicos”.



Ainda, e na mesma linha, a Carta de Lausanne – ICOMOS-ICAHM, para além de enfatizar a matriz finita do patrimônio cultural arqueológico, corrobora a necessária conservação in situ:



Art. 3º A proteção do patrimônio arqueológico constitui obrigação moral de todo ser humano. Constitui, também, responsabilidade pública coletiva. (...)

A legislação deve garantir a conservação do patrimônio arqueológico em função das necessidades da história e das tradições de cada país e de cada região, garantindo amplo lugar à conservação in situ e aos imperativos da pesquisa.”

         

Não por outra razão afirma Bastos apud Soares:

           

O patrimônio arqueológico é assim integrado não só por bens materiais (artefatos de pedra, osso, cerâmica, restos de habitação, vestígios de sepultamentos funerários), mas também, e principalmente, pelas informações deles dedutíveis a partir, por exemplo, da sua própria disposição locacional, das formas adotadas para ocupação do espaço e dos contextos ecológicos selecionados para tal. (...) a recente dinâmica da arqueologia brasileira tem apontado para uma tendência crescente dos trabalhos de arqueologia preventiva (arqueologia que antecede qualquer impacto ou possível impacto), ligados em sua esmagadora maioria à necessidade de licenciamento ambiental de empreendimentos de qualquer natureza, potencialmente causadores de danos ao patrimônio arqueológico.” [2]

           

Resgatado o material, contudo, há que se perquirir sobre sua  manutenção. A convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (UNESCO, 2001) determina, através da regra 17 de seu anexo, intitulado “Regras relativas a intervenções sobre o patrimônio cultural subaquático”, que:



 “Antes do início de qualquer intervenção, excepto em casos de urgência para proteger o patrimônio cultural subaquático, deve ser garantida uma base de financiamento adequada, suficiente para completar todas as fases do plano do projecto, incluindo a preservação, a documentação e a preservação do material arqueológico, assim como a preparação e a divulgação dos relatórios.



 Malgrado não seja o Brasil signatário de tão importante documento – que, inclusive, poderia ser utilizado analogicamente em outras searas - tal omissão governamental não enfraquece o poder de polícia do IPHAN nem tampouco tem o condão de desqualificar a sua atuação, fulcrada no princípio da responsabilidade cultural pós-licenciamento. É corolário de tal princípio o quanto disposto na Portaria IPHAN 230/2002, artigo 8º, in verbis:

           

No caso da destinação da guarda do material arqueológico retirado nas áreas,  regiões ou municípios onde foram realizadas pesquisas arqueológicas, a guarda destes vestígios arqueológicos deverá ser garantida pelo empreendedor, seja na modernização, na ampliação, no fortalecimento de unidades existentes, ou mesmo na construção de unidades museológicas específicas para o caso.”



Nesse ponto importante observar: autorizado, via portaria, pelo IPHAN, o arqueólogo contratado pelo empreendedor durante o licenciamento funcionará com o uma longa manus da autarquia. Será ele o responsável pela análise de dados, retirada do acervo, estudo dos bens e produção de pesquisa/educação patrimonial, de tudo informando a autarquia federal. A responsabilidade pela guarda de tão importante acervo segue até a entrega na instituição que emite o endosso. Assim, caso o licenciamento ambiental não respeite as etapas do procedimento de acompanhamento do IPHAN na seara arqueológica, culminará em licenças viciadas, possibilitando a anulação do mesmo, nos moldes do quanto disposto na resolução CONAMA 237/97, artigo 19.



A IN 01/2015, que revogou a resolução IPHAN 230/2002, manteve a mesma idéia do material arqueológico ser recebido por uma instituição, criada pelo empreendedor ou mesmo auxiliada por ele. Explicitou, ainda, que o empreendedor também é responsável pelo acervo arqueológico, in verbis:



Art. 46. O empreendedor e o arqueólogo coordenador são responsáveis solidariamente pela fiel execução das atividades autorizadas pelo IPHAN.

A IN em questão também regulamentou, de forma mais detalhada, todo o iter procedimental para que seja trabalhado, pelo empreendedor, arqueólogo e instituição endossante, o recorte da arqueologia. Todavia, não revogou, naquilo que lhe for compatível, a portaria IPHAN 07/88, que estabelece os procedimentos necessários à comunicação prévia, às permissões e às autorizações para pesquisas e escavações arqueológicas em sítios arqueológicos previstas na Lei n.º 3.924, de 26 de julho de 1961. Tanto a portaria quanto a IN deixam clara a necessidade de que o arqueólogo coordenador das atividades apresente projeto que permita análise do material, aproveitando o “(...) máximo do seu potencial cientifico, cultural e educacional.” É dizer, o arqueólogo, que figura como fiel depositário do material até que seja entregue à instituição, deve apresentar plano de trabalho científico ao IPHAN, comprometendo-se a estudar o material, analisá-lo em profundidade, fazer a extroversão de seu conhecimento também através de relatório detalhado a ser entregue à autarquia no final dos trabalhos. A instituição endossante, por seu turno, deve garantir a guarda desse material, seu correto acautelamento e manutenção.

            Ainda, o IPHAN conta com banco de dados “registrando” os sítios arqueológicos, conforme artigo 27 da lei apontada. Tais dados são públicos e merecem ser inseridos nas verificações do licenciador, cotejando a área direta ou indiretamente atingida com as coordenadas indicadas nos arquivos em comento. Assim, frise-se, não somente os estudos feitos pelo empreendedor podem apontar a incidência como deverá o licenciador manter atitude proativa, cotejando dados públicos com aqueles apresentados no projeto.

 

 

CONCLUSÃO

 

O presente texto, frise-se, não tem a pretensão de substituir a leitura acurada da bibliografia abalizada sobre o tema. Todavia, não se pode fechar os olhos às dificuldades que o dia a dia de um Procurador da República enfrenta, principalmente aqueles que não possuem atuação especializada na matéria e/ou se encontram em localidades distantes, trabalhando em todos os temas. Assim, a pretensão é meramente de que seja entendido o iter básico do licenciamento ambiental na área da arqueologia, suas fases e seus principais diplomas normativos.

 

1 2 3 http://www.cta-es.com.br/o-que-fazemos/67/Diagnostico-Arqueologico.html - acesso em 13-07-2015